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quarta-feira, 12 de outubro de 2011

MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS - Manuel Antônio de Almeida



Era no tempo do rei
Quando aqui chegou
Um modesto casal,
Feliz pelo recente amor.
Leonardo, tornando-se meirinho,
Deu a Maria Hortaliça um novo lar,
Um pouco de conforto e de carinho.
Dessa união nasceu um lindo varão
Que recebeu o mesmo nome de seu pai,
Personagem central
Da história que contamos neste carnaval.
Mas um dia Maria
Fez a Leonardo uma ingratidão,
Mostrando que não era
Uma boa companheira provocou a separação.
Foi assim que o padrinho passou
A ser do menino o tutor
E deu toda a sua dedicação
Sofrendo uma grande desilusão.
Outra figura importante em sua vida
Foi a comadre – parteira popular.
Diziam que benzia de quebranto,
A beata mais famosa do lugar.
Havia nesse tempo aqui no Rio
Tipos que devemos mencionar:
Chico Juca era mestre em valentia
E por todos se fazia respeitar;
O Reverendo, amante da cigana,
Preso pelo Vidigal, o justiceiro,
Homem de grande autoridade,
Que à frente dos seus granadeiros
Era temido pelo povo da cidade;
Que Leonardo conheceu
Luisinha, primeiro amor
E que dona Maria a outro como esposa concedeu,
Somente foi feliz
Quando José Manoel morreu.
Nosso herói novamente se apaixonou
Quando com sua viola a mulata Vidinha
Esta singela modinha cantou:
Se os meus suspiros pudessem
Aos teus ouvidos chegar,
Verias que uma paixão
Tem poder de assassinar.

Memórias de um sargento de milícias.
Samba enredo premiado-1966 – Portela.


I – AUTOR:

MANOEL ANTÔNIO DE ALMEIDA
(Gamboa, RJ, 1831 – RJ, 1861)


“Era tempo do rei.....e a malandragem na rua”


Filho de família humilde dedicou-se ao jornalismo e a traduções para poder custear seus estudos.
Foi revisor e redator do “Correio Mercantil”, onde publicava semanalmente em folhetins as Memórias de um sargento de milícias, no suplemente literário “A Pacotilha”, com o pseudônimo de Um Brasileiro.
Estudou Medicina e foi nomeado diretor da Tipografia Nacional. Tentou ingressar na carreira política e a fazer a sua primeira viagem de campanha, faleceu no naufrágio de um vapor, no litoral do Rio de Janeiro.

“[...] Navegando na direção da costa no rumo E.N.E. pelas 4 horas da madrugada senti um pequeno choque e o vapor como que resvalou sobre alguma pedra para mim desconhecida naquela localidade.
Continuei a viagem, fazendo o vapor nesta ocasião cerca de 9 milhas por hora, depois de ter mandado parar o maquinismo e haver sondado em 7 braças e meia; o maquinista, porém, observou-me que entrava a água pela proa em jorros, e já havia invadido o rancho da equipagem.
Tornava-se, portanto impossível prosseguir na marcha e para salvar a vida dos passageiros e tripulação aproei à praia. A grande quantidade de água que entrava impediu de pôr em execução este meu projeto.
Acrescia ainda outro perigo mais ameaçador – a explosão. Fiz a única coisa que me restava fazer, mandar suspender as válvulas das caldeiras e apagar o fogo. Mas ainda estávamos cerca de duas milhas distantes da praia. Logo que cessou o trabalho da máquina, o vapor foi mergulhando a proa e depois lentamente desapareceu em 6 braças de fundo.
[...]
Calculo em 87 o número de passageiros e escravos falecidos. O mar tem arrojado à praia alguns cadáveres....

O texto acima, publicado no Correio Mercantil (05-12-1861), refere-se ao naufrágio em que morreu Manuel Antônio de Almeida.

II – ESTRUTURA:


Publicado anonimamente em folhetins semanais no jornal, Correio Mercantil do Rio de Janeiro, de 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853, com a autoria atribuída a “um brasileiro”, ganhando logo depois, forma de livro em dois volumes: o primeiro, em 1853 e o segundo, em 1854. A nova edição passou praticamente despercebida, e a obra caiu no esquecimento por muitos decênios, até que a renovação modernista veio a fazer-lhe justiça.
A obra é composta de 48 capítulos (a novela está dividida em duas partes bem distintas: a primeira com 23 capítulos e a segunda com 25), a maioria deles muito curtos cujos títulos, também pequenos, resumem a ação ou o conflito principal narrado no capítulo. Os episódios são quase autônomos, só ligados pela presença de Leonardo, dando à obra uma estrutura mais de novela que de romance.
Segundo Eliane Zagury, tendo sido composta para ser lida de forma periódica, no folhetim, a narrativa, apresenta alguns traços técnicos típicos, derivados das narrativas medievais de leitura periódica coletiva, como os enredos paralelos e alternados, que ainda hoje são à base da telenovela. E, cada vez que o autor muda o foco da narrativa, faz uma chamada ao leitor, quase a lembrá-lo de que, apesar de tudo, aquele ainda é o mesmo folhetim.
Enquanto em Macedo desfilavam-se mocinhos e donzelas idealizadas pelos salões da corte e nos saraus, Manuel Antônio de Almeida contrasta com os romances românticos de sua época e possui traços que anunciam a literatura modernista do século XX, por várias razões. Primeiro, por ter como protagonista um herói malandro (Leonardo é o primeiro malandro da literatura brasileira), ou um “anti-herói”, caracterizado como vagabundo, mentiroso e que alcança seus ideais não pela hombridade, mas pelo “jeitinho” brasileiro do favoritismo, na opinião de alguns críticos. Segundo, pelo tipo especial de nacionalismo que o caracteriza ao documentar traços específicos da sociedade brasileira, em questão a do Rio de Janeiro, ainda antes da Independência, no tempo do rei D. João VI e a família real portuguesa no Brasil, fugindo de Napoleão, com seus costumes, as festas populares, folclóricas e religiosas, dando um caráter documental da época, porém descritas com humor e sátiras, os comportamentos e os tipos sociais de um estrato médio da sociedade. Não há idealização das personagens, mas observação direta e objetiva. Presença de camadas inferiores da população (barbeiros, comadres, parteiras, meirinhos, "saloias", designados pela ocupação que exercem). As personagens não são heróis nem vilões (praticam o bem e o mal) impulsionadas pelas necessidades de sobrevivência (a fome, a ascensão social), até então ignorado pela literatura. Terceiro, pelo tom de crônica que dá leveza e aproxima da fala ao estilo jornalístico.
Há, por parte dos críticos literários de hoje, certa unanimidade em torno das Memórias, que aponta o seu caráter ímpar em relação aos demais livros pertencentes ao Romantismo brasileiro, o criador de Leonardo, andando aparentemente à margem da preocupação nacional, nos apresenta um livro que, à primeira vista, escapa da lógica romântica e pontua alguns problemas do país, colocando esse livro numa posição destoante em relação ao próprio Romantismo.
Antonio Candido no seu famoso estudo sobre as Memórias: “Dialética da Malandragem”, afirma que o livro de Manuel Antônio de Almeida é talvez o único livro em nossa literatura do século XIX que não exprime uma visão de classe dominante. A obra retrata a luta de uma classe social que está em posição de intermediária: de um lado, ela se vê despida de qualquer poder de mando, atividade praticamente exclusiva à elite senhorial; e, de outro, se vê distante da noção de trabalho, já que o trabalho era “obrigação” do escravo.
Manuel Antônio de Almeida, escrevendo em meados do século, já no Segundo Império, olhava para o passado de sua cidade, no início do século, com o interesse intensificado pela distância, pois entre os dois momentos o Rio e seus habitantes tinham passado por transformações significativas.
O leitor acompanha o crescimento do herói com sua infância rica em travessuras, a adolescência com as primeiras ilusões amorosas e aventuras, e o adulto, que, com o senso de responsabilidade, que essa idade exige, vai-se enquadrando na sociedade, o que culmina com o casamento.

III – FOCO NARRATIVO:

Memórias de um Sargento de Milícias é romance narrado em terceira pessoa, sendo um narrador-observador/comentarista quem conta a história. O cinismo bem humorado, as sistemáticas interferências nas situações sempre divertidas que relata as ironias e as brincadeiras envolvendo costumes e personagens da época constituem alguns traços marcantes deste narrador, cujo juízo crítico a respeito do que vai documentando algumas vezes revela-se de forma claramente debochada.
O tom constante de seus comentários, que por vezes chegam a ser contundentes críticas à sociedade, aos costumes ou a uma determinada personagem, é sempre de bom humor e ironia.
Em apenas duas passagens do romance o narrador deixa entrever que não sabe o que se passa com as personagens. Uma dela é quando, no capítulo XXI diz a respeito do amor de Leonardo por Luisinha: “...é isso segredo do coração do rapaz que nos não é dado penetrar: o fato é que ele a amava, e isto basta”. A outra quando, no capítulo XXVIII, diz a respeito da conversa entre Luisinha e Leonardo: “O que ele se diziam não posso dizê-lo ao leitor, porque não sei.”
Usando do recurso de contador de histórias, o narrador conduz o enredo segundo sua conveniência. Para atrair a atenção e interesse do leitor faz um jogo de esconde/revela em que deixa em suspenso ações, explicações sobre as personagens, e mesmo o nome de algumas personagens, para mais tarde revelá-los.

Além de romper com a tradicional postura idealizadora do narrador romântico, em relação aos indivíduos e também a terra, o narrador da obra, ora transita da terceira para a primeira pessoa do plural. Geralmente quando muda o foco da narrativa, fazendo uma chamada ao leitor, pedindo sua cumplicidade. Assim, ele assume caráter metalinguístico com o leitor, o que significa um anúncio de procedimentos modernistas, também percebido nas conversas com o leitor e nos comentários jocosos que faz a propósito do que conta.

IV – LINGUAGEM:

Nas Memórias, a linguagem se constitui num aspecto essencial que, a sua maneira, reforça a tese de que esse romance se inscreve na contramão do Romantismo brasileiro.
Marcada pelo uso de coloquialismo, direta e sintaxe próxima da linguagem cotidiana e amparada no olhar jornalístico do autor, aproxima-se da língua falada na época, um tom humorístico que, ao apoiar-se na oralidade, contribui para configurá-lo enquanto um dos precursores do moderno romance brasileiro.

V – TEMPO E ESPAÇO:


A chegada de dom João ao Rio. Dom João escapou de perder seu reino para Napoleão ao vir com a família para o Brasil

O Paço Imperial, na gravura de Debret: onde o rei do Brasil e de Portugal viveu e governou ao longo de 13 anos - Gravura: reprodução do livro Voyage Pittoresque et Historique au Brésil

O tempo é demarcado com a própria abertura do romance, quando o narrador afirma que esta se passa no tempo do rei, isto é, na época do rei D. João VI, momento em que a corte portuguesa, perseguida por Napoleão, se transfere para o Rio de Janeiro.
O tempo presente da narração é posterior àquele em que se deu à narrativa, ou seja, o narrador nos conta uma história que já ocorreu, num passado não muito distante, apresentando um tom de saudosismo e de nostalgia por um tempo bom que já passou.

Do ponto de vista espacial, é um romance de costumes, que vem nos descrever a vida da coletividade urbana do Rio de Janeiro. Mas, não se trata de um romance histórico, que pretenda narrar fatos ou vidas de tonalidade heróica.
A professora Eliane Zagury afirma que “ao contrário de seus contemporâneos que, descrevendo a vida do Rio de Janeiro, enobreciam-na com véus de retórica ou com a omissão de tudo o que não significasse a elite e o bom gosto. Manuel Antônio de Almeida nos faz conviver com todas as classes sociais em inter-relação e com costumes bons ou maus – descreve todas as indumentárias, de gala ou não, que possam significar vivência social; todas as festas de rua, de igreja e de família”.


Rio de Janeiro, 1808: Cena de um "entrudo" que reunia do Senhor ao escravo. Como as galinhas eram caríssimas, à mesa do povo iam iguarias como lagarto, macaco, gambá, paca e tatu, além da feijoada. O peixe era pouco apreciado

VI – PERSONAGENS:

Leonardo: é o protagonista da história. Abandonado pelos pais parece, por compensação, ser o “bem amado” de seu padrinho, de sua madrinha, e de outras personagens que o protegem por simplesmente simpatizarem com ele. Desde a infância é apresentado como tendo um comportamento quase que compulsivo para as travessuras. Ao crescer torna-se um vadio tipo, anti-herói, herói às avessas, herói picaresco, levando uma vida mais confusa que propriamente problemática.
Vadio por convicção, ele inaugura dentro da literatura brasileira uma espécie de linhagem malandra que terá em Macunaíma, de Mário de Andrade, o seu apogeu. A professora Berta Waldman afirma: Leonardo “vai encontrando seu caminho aplainado pelos outros, jogando apenas com sua simpatia”. Desse modo, transitando naturalmente entre o certo e o errado assim como todos os personagens do livro. Para ele, “não havia fortuna que não se transformasse em desdita, e desdita que não lhe resultasse em fortuna”.

Leonardo-Pataca: veio de Portugal. Trabalhava como oficial de justiça (meirinho). Tipo moleirão e sentimental, sempre enroscado em suas paixões: inicialmente com Maria da Hortaliça, mãe de Leonardo; depois com uma cigana e, finalmente, com Chiquinha com quem teve uma filha. Dá provas de sua honestidade ao entregar religiosamente intacta a herança que o compadre deixara para Leonardo.

Maria-da-Hortaliça: veio também de Portugal, onde trabalhava como quitandeira (saloia) nas praças de Lisboa. É a mãe do herói. Caracteriza-se por ser infiel e namoradeira. Abandona o marido e o filho por um capitão de navio. Foram “saudades da terra”.

Major Vidigal: É a única personagem histórica do romance. Temido e respeitado por todos. Representante maior da própria lei. Severo e autoritário é ao mesmo tempo, policial e juiz. Ele “resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas.”

Comadre: protetora de Leonardo, estando sempre pronta para intervir em favor de Leonardo. Ela “vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade.”

Compadre Barbeiro: É uma personagem que também apresenta um comportamento contraditório. Apesar de ter se apropriado indevidamente de fortuna alheia, acaba se reabilitando ao assumir o afilhado. É quem cria o menino como se fosse o seu filho, sonhando um próspero futuro para ele; só que isso não acontece.

D. Maria: velha, muito gorda rica, bondosa e amiga dos pobres. Era apaixonada por causas judiciais (“o alimento de sua vida”). Tia e tutora de Luisinha, amiga da comadre e do compadre. Foi quem arrumou o primeiro casamento da sobrinha.

Luisinha: Sobrinha de D. Maria e primeiro amor de Leonardo. Após tornar-se viúva de um marido que era para ela um “dragão”, casa-se com o nosso herói. Suas características fogem da idealização dos modelos românticos: era feia, magra, pálida, desajeitada e andava com o queixo enterrado no peito.

José Manuel: Vindo da Bahia, foi o primeiro marido de Luisinha. Era um maldizente, mentiroso e caça-dotes, representa uma crítica à burguesia. Morreu devido a um derrame.

Vidinha: É prima de Tomás da Sé, amigo de infância de Leonardo. Cantora de modinhas, segunda paixão de Leonardo. Acabam se separando quando descobre o verdadeiro motivo por que Leonardo havia sido despedido da ucharia real.

Chiquinha: filha da comadre e esposa de Leonardo Pataca.

Maria-Regalada: camarada de D. Maria e ex-amante de Vidigal. Intercede duas vezes por Leonardo, livrando-o da punição e promovendo-o a sargento de milícias.

Além desses, há outros como: Chico Juca, mestre em valentia; Tomás da Sé, corolinha com Leonardo na Sé; o mestre de cerimônias, o toma largura, a vizinha, a cigana, o mestre-de-rezas, tenente-coronel, o professor e muitos outros personagens coletivos, caricaturais, que não têm sequer nome, representado apenas funções.
Esses personagens encaixam-se na categoria de tipos alegóricos, pois não possuem profundidade psicológica e são como caricatura de uma classe social: o povo, a classe média carioca da época. É por essa razão que a obra deve ser considerada um romance de costumes.

VII – RESUMO:


O narrador, baseando-se em uma história contada por um sargento de milícias aposentado, adota a postura de contador de histórias para narrar os costumes e acontecimentos de mais ou menos cinqüenta anos atrás. Logo, o narrador não viveu na época das estripulias de Leonardo.

I – Origem, nascimento e batismo - É a apresentação do protagonista Leonardo. O narrador, baseando-se na história que um sargento de milícias aposentado lhe contou, narra à vida e os costumes do Rio de Janeiro na época em que D. João VI esteve no Brasil, daí iniciar com:



“Era no tempo do Rei.”
O PIONEIRO DA NAÇÃO

Imagem de dom João VI. Em seu reinado, o Brasil se abriu ao comércio mundial, ganhou o primeiro teatro e passou a ter livros e imprensa



Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos -; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozavam então de não pequena consideração).”

Os meirinhos da época em que vivia o narrador, segunda metade do século XIX, eram apenas uma sombra caricata daqueles do tempo do Rei, gente temida e temível, respeitada e respeitável e a sua influência moral era a de formarem um dos opostos da cadeia judiciária; mas além da influência moral tinham também a influência que derivava de suas condições físicas, que é o que falta nos meirinhos de hoje (época em que vivia o narrador da obra), estes são homens como quaisquer outros, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição; já os da época do rei eram inconfundíveis tanto no semblante quanto no trajar: “sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadachim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado.”
Nesta época ele podia usar e abusar da sua posição.
Após a comparação, o narrador chama o leitor para participar da narrativa, usando para isso, a primeira pessoa do plural: “Mas voltemos à esquina, à abençoada época do Rei”, e lá, apresenta-lhe a equação meirinhal; um grupo de meirinhos conversando sobre tudo que era lícito conversar: vida dos fidalgos, fatos policiais e astúcias do Vidigal. No grupo destacava-se Leonardo Pataca, uma rotunda e gordíssima figura de cabelos brancos e carão avermelhado; era moleirão e pachorrento; como era moleirão, ninguém o procurava para negócios e ele nunca saía da esquina, passava os dias, sentado tendo a sua infalível companheira depois dos cinqüenta, a bengala. Como sempre se queixava dos 320 réis por citação, deram-lhe o apelido de Pataca.
Cansado de ser o Leonardo algibebe de Lisboa viera ao Brasil e não se sabe por proteção de quem havia alcançado o posto de meirinho. Ainda a bordo do navio, conhecera Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitona. Eles se conheceram quando ela estava encostada a bordo do navio e ele, ao passar, fingiu-se de distraído e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda.

De beliscões e pisadelas, tornaram-se amantes e assim que eles desembarcaram, ela começou a sentir certos enojos. Os dois foram morar juntos e sete meses depois, manifestaram-se os efeitos da pisadela, nasceu o herói dessa história, que recebeu o mesmo nome do herói, um formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão. Assim que nasceu, mamou duas horas seguidas, sem largar o peito.

Os padrinhos de batismo foram à madrinha parteira e o compadre barbeiro, foi uma festança; o compadre trouxe a rabeca e todos dançaram o fado e apesar da dificuldade em encontrar pares, o minueto; Leonardo queria uma festa refinada, mesmo com dificuldade em achar pares. Levantaram: uma mulher gorda, baixa e matrona, sua companheira, cuja figura era a mais completa antítese da sua, um colega do Leonardo, miudinho e pequenino, com ares de gaiato e o sacristão da Sé, alto e magro, com pretensões de elegante.

Enquanto compadre tocava o minueto na rabeca, o afilhadinho acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio fazendo o compadre perder, várias vezes, o compasso.

Aos poucos o minueto foi desaparecendo e a coisa esquentou, chegaram os rapazes da viola e machete; logo, a coisa passou de burburinho para gritaria e algazarra, que só parou quando perceberam que o Vidigal estava por perto.

A festa acabou tarde. A madrinha foi à última a sair, mas antes colocou um raminho de arruda no pimpolho.

As Memórias começam por caracterização jocosa da vida judiciária e da hierarquia forense, dos meirinhos aos desembargadores. Esse quadro social serve de preâmbulo para introduzir a figura de Leonardo Pataca, de seus antecedentes portugueses, de seu romance fortuito no navio que o trouxe com Maria da Hortaliça, de quem resultou, sete meses depois, o nascimento do memorando. Sete meses depois de estarem morando juntos, manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão: teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão
O compadre barbeiro e a comadre parteira levam o recém-nascido a pia batismal. Segue-se a divertida caracterização da festa, que o pai queria com a solenidade do minuete e da corte e que descamba rapidamente para a modinha popular.

II – Primeiros infortúnios - O narrador, mais uma vez, inclui o leitor na narrativa, chamando-o para pularem alguns anos desde o batizado do herói e irem encontrá-lo com sete anos, mas antes avisa que durante todo esse tempo o menino não desmentiu aquilo que já se anunciava, ou seja, desde o nascimento já atormentava: ainda bebê era o choro, mas assim que se pôs a andar era um flagelo, quebrava e rasgava tudo o que podia; o que mais gostava era do chapéu do pai e sempre que podia pôr-lhe as mãos, punha-lhe dentro tudo o que encontrava. Quando não traquinava, comia. Maria não lhe perdoava, tanto que o menino trazia uma região do corpo bem maltratada, mesmo assim ele não se emendava, era teimoso, suas travessuras recomeçavam mal acabava a dor das palmadas. Foi assim que o herói chegou aos sete anos.

Como a mãe, Maria, sempre fora saloia, o pai, Leonardo, suspeitava de que estava sendo traído, pois por diversas vezes viu um sargento se esgueirando e enfiando olhares curiosos pela janela adentro. Outras vezes estranhou que certo colega sempre ia procurá-lo em casa; mas o mais grave foi, não só se deparar várias com certo capitão do navio de Lisboa junto de sua casa, como também, ao entrar em casa, vê-lo fugir pela janela. Não agüentou, cerrou os punhos e tremendo com todo o corpo, gritou: — “Grandessíssima!..., em seguida, saltou sobre Maria. Ela saltou para trás, pôs-se em guarda e sem temer advertiu-o: — Tira-te lá, ó Leonardo!”

Como a sua resistência, frente ao ódio de Leonardo, era inútil, começou a correr e pedir socorro ao compadre Barbeiro que ocupado, ensaboando a cara de um freguês, nada pôde fazer e ela, como única opção, encolheu-se em um canto.
O menino, no maior sangue-frio, enquanto rasgava as folhas dos autos que o pai havia largado ao entrar, assistia à mãe que apanhava.
Quando o pai estava se acalmando, viu a obra do filho e tornou a se enfurecer: suspendeu o filho pelas orelhas, fazendo-o dar meia volta; em seguida ergueu o pé direito e dizendo que o menino era filho de uma pisadela e de um beliscão, assentou-lhe em cheio sobre os glúteos, atirando-o a quatro braças de distância.
O menino ergueu-se rapidamente e em três pulos estava dentro da loja do padrinho; nem bem havia entrado, esbarrou na bacia de água com sabão que estava nas mãos do padrinho e acabou batizando o freguês com toda aquela água.
O afilhado apontou o problema e o padrinho, após desculpar-se com o freguês, resmungou:
“ — Ham! resmungou; já sei o que há de ser... eu bem dizia... ora ai está!... e foi acudir o que acontecia.
Por estas palavras vê-se que ele suspeitara alguma coisa; e saiba o leitor que suspeitara a verdade.”

Não se pode deixar de perceber nesse fragmento que o narrador conversa com o leitor, chamando-o para a narrativa.

O compadre já sabia o que estava acontecendo, pois era comum, na época, espionar a vida alheia, logo, conhecia todas as visitas da comadre.

O barbeiro entrou na casa do compadre Leonardo e ao perguntar-lhe se havia perdido o juízo, ele respondeu-lhe “ter perdido a honra.”
Maria apareceu e sentindo-se protegida pelo compadre, pôs-se a zombar e ofender toda a classe masculina; assim que acalmou o segundo “round” de murros, enquanto ela chorava em um canto, Leonardo, com olhos e bochechas vermelhas, juntou os papéis rasgados, a bengala e o chapéu e saiu batendo a porta. Era de manhã.

À tarde quando o compadre retornou a casa, decidido fazer as pazes com Maria, ela não estava mais lá, havia fugido com o capitão do navio de Lisboa.

Leonardo saiu sem falar nada e o pequeno ficou com o Compadre Barbeiro.

Narra a infância de Leonardo até sete anos, suas primeiras traquinagens, simpatias e antipatias, além da especial predileção pelo chapéu armado do pai, tomado como espanador de móveis ou de chão. Segue-se a ruptura do casal Leonardo Pataca e Maria da Hortaliça, flagrada com outro homem. Durante a briga, Leonardo é enxotado com um pontapé nos fundilhos. É o primeiro “trauma” do protagonista, que fica então aos cuidados do padrinho barbeiro, com a ajuda da madrinha.

III – Despedidas às travessuras - O pequeno, enquanto se achava novato na casa do padrinho, portou-se com sisudez e seriedade, mas assim que foi se familiarizando com o novo ambiente, começou a pôr as manguinhas de fora; mesmo assim, o padrinho estava cego de afeição pelo menino, tanto que por pior que fosse a travessura do garoto, ele achava graça dizendo serem atitudes ingênuas.
A atitude do homem era natural, visto que ele já tinha 50 e tantos anos, nunca tinha tido afeições; passara sempre só, isolado; era verdadeiro partidário do mais decidido celibato. Logo à primeira afeição que fora levado a contrair sua alma expandiu-se toda inteira, e seu amor pelo pequeno subiu ao grau de rematada cegueira.
Este, aproveitando-se da imunidade em que se achava por tal motivo, fazia tudo quanto lhe vinha à cabeça.
O menino era de fato endiabrado: várias vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns riam e outros se enfureciam, do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava; ele ria-se furtiva e malignamente. Em casa, nada ficava inteiro por muito; pelos quintais atirava pedras aos telhados dos vizinhos; sentado à porta da rua, entendia com quem passava e com quem estava pelas janelas, de maneira que ninguém por ali gostava dele. O padrinho porém não se dava disto, e continuava a querer-lhe sempre muito bem. Desempenhando o papel de pai, passava às vezes, as noites fazendo castelos no ar a seu respeito; sonhava-lhe uma grande fortuna e uma elevada posição, e tratava de estudar os meios que o levassem a esse fim. Queria o melhor para o menino, já que havia se arranjado na vida, pensava até em enviá-lo para Coimbra, (como um babeiro havia se arranjado na vida e conseguido dinheiro para isso, segundo o narrador, é assunto para outra história). Segundo o barbeiro, a melhor profissão para o menino seria a de clérigo.

Após ruminar por muito tempo essa idéia, certa manhã, uma quarta-feira, chamou o pequeno, então com nove anos, e disse-lhe que deveria se fartar de travessuras até o resto da semana, dali em diante, só aos domingos, após a missa. O pequeno levou a fala do padrinho ao pé da letra e achou que era uma licença ampla para fazer tudo o que quisesse, fosse bem ou mal.

Ao anoitecer, sentado à porta, o padrinho viu de longe um acompanhamento alumiado pela luz de lanternas e tochas e ouviu padres rezarem. Era a via sacra do Bom Jesus.

O menino quando viu aquilo, estremecendo de alegria, lembrou se da fala do padrinho, “fartar-se de travessuras”; não perdeu tempo: misturou-se com a multidão, e lá foi, concorrendo com gargalhadas e seus gritos para aumentar a vozeria. Com um prazer febril pulava, cantava, gritava, rezava e saltava, era um prazer febril; só não fez o que não tinha forças. Para ajudar ainda mais as estripulias, juntou-se com mais dois moleques e as estripulias foram tantas, que quando deu por si a via-sacra já havia retornado à igreja do Bom Jesus.

Já na casa do barbeiro, este faz projetos para o futuro do afilhado e dá início à sua alfabetização. Mas ele parecia mais propenso a divertir-se, contrariando a todos: umas vezes sentado na loja divertia-se em fazer caretas aos fregueses quando estes se estavam barbeando. Uns enfureciam-se, outros riam sem querer; do que resultava que saíam muitas vezes com a cara cortada, com grande prazer do menino e descrédito do padrinho. Outras vezes escondia em algum canto a mais afiada navalha do padrinho, e o freguês levava por muito tempo com a cara cheia de sabão mordendo-se de impaciência enquanto este a procurava: ele ria-se furtiva e malignamente.
O compadre decide pela vida religiosa de seu protegido, e o Leonardo dá a sua primeira escapadela, acompanhando a Via Sacra do Bom Jesus.

IV – A fortuna - Enquanto o compadre procura o afilhado por toda a parte, o narrador, ao convidar o leitor para ver o que era feito do Leonardo, acaba chegando às bandas do mangue da Cidade Nova, em uma casa coberta de palha da mais feia aparência, possuía dois cômodos e a mobília compunha-se de dois ou três assentos de paus, algumas esteiras, uma caixa enorme de pau que servia para várias coisas: mesa de jantar, cama, guarda-roupa e prateleira. Quem morava nessa tapera não era o Leonardo, mas sim um feiticeiro, um caboclo velho, que conforme crença da época tinha por ofício dar fortuna. Não era só a gente do povo que acreditava, mas também muita gente da alta sociedade o procurava para comprar a felicidade pelo cômodo preço da prática de algumas imoralidades e superstições.

Dentre a gente do povo que o procurava em busca de fortuna, temos o Leonardo Pataca por causa das contrariedades que sofria com um novo amor. Era uma cigana que Leonardo conhecera logo após a fuga de Maria, isso porque ele era romântico - termo que na época do narrador significa babão, já na época de Leonardo Pataca significava que ele não podia passar sem uma paixãozinha. Como a sua profissão rendia não lhe era difícil conquistar a posse do adorado, mas a fidelidade, a unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava isso não conseguira, pois a cigana era tão saloia quanto Maria da Hortaliça, esta fugira com outro com a desculpa de saudades da pátria, mas a outra não eram saudades, o que fez Leonardo buscar meios sobrenaturais para consegui-la de volta, já que os meios humanos movidos por súplicas não funcionaram.

O seu desespero era tamanho que se entregou de corpo e alma ao caboclo da casa do mangue, além de contribuir com dinheiro, já ter sofrido fumigações de ervas, tragar bebidas enjoativas; decorar milhares de orações misteriosas, que era obrigado a repetir muitas vezes por dia; tinha também que depositar quase todas as noites em lugares determinados quantias e objetos com o fim de chamar em auxílio, dizia o caboclo, as suas divindades; apesar de tudo isso a cigana resistia ao sortilégio. A última prova para a reconquista foi marcada para a meia-noite; à hora marcada Leonardo encontrou à porta, o nojento feiticeiro que não permitiu que ele entrasse vestido, obrigou-o a trajar-se à moda de Adão no paraíso e após cobri-lo com um manto imundo, abriu-lhe a entrada.

Lá dentro, após ajoelhar-se e rezar em todos os cantos da casa, Leonardo aproximou-se da fogueira, quatro figuras saíram do quarto e foram juntar-se a eles e todos dançavam sinistramente ao redor da fogueira quando de repente bateram levemente a porta e pediram para abri-la, isto fez com que todos de dentro se sobressaltassem: era o major Vidigal.

Leonardo Pataca amasia-se com uma cigana, que também o abandona e trai. O velho meirinho apela para um preto velho feiticeiro para que traga de volta a cigana. Durante a cerimônia, todos são surpreendidos no terreiro pelo Major Vidigal, que leva Leonardo preso.

V – O Vidigal - Nessa época ainda não estava organizada a polícia da cidade, portanto o major era rei absoluto, era o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas.

Exercia enfim uma espécie de inquirição policial. Entretanto, frente aos costumes e acontecimentos da época. Era um homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os movimentos lentos, e voz descansada e adocicada. Apesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por certo homem mais apto para o seu cargo inquisidor.

O major Vidigal juntamente com uma companhia de soldados escolhido por ele rondavam a cidade à noite e a sua polícia durante o dia. Não havia um lugar em que a sagacidade do major não prendesse os malandros. Ele espalhava terror.
O som daquela voz que dissera “abra a porta” gerava medo nos integrantes da sala, era o prenúncio de um grande aperto, com certeza não conseguiriam escapar. Mesmo assim, o grupo pôs-se em debandada, tentaram sair pelos fundos, mas a casa estava cercada e todos foram pegos em flagrante delito de nigromancia.

O major por sua vez, já dentro da casa, pediu-lhes que continuassem com a cerimônia, pois queria ver como era. Resistir era inútil, então, após hesitarem, recomeçaram ritual. Já fazia meia hora que dançavam andando ajoelhados, mas sempre que paravam o major pedia para continuarem. Muito tempo depois pararam, mas o major pediu-lhes para continuarem. Não aguentavam mais, mas o major ordenava que continuassem.
Muito, mas muito tempo depois, quando já se arrastavam, o major ordenou-lhes que parassem e pediu aos granadeiros para tocarem, fazendo-os arrancarem suas chibatas e o grupo feiticeiro dançar muito mais.

Depois de reger a música para a frenética dança, o major Vidigal começou o interrogatório. Perguntou a ocupação de um por um e nada ouviu, até que chegou a vez do Leonardo Pataca, reconheceu-o e quando o pobre homem explicou-lhe o motivo de tudo aquilo, o major prontificou-se a curá-lo e arrastou-o para a casa da guarda no largo da Sé, era uma espécie de depósito que guardava os que haviam sido presos durante a noite até dar-lhes um destino. No fim das contas, Leonardo acabou sendo preso e recolhido à casa da guarda, onde ficou “exposto à vistoria dos curiosos”.
Ao amanhecer, toda a cidade já sabia do ocorrido e Leonardo foi mandado para a cadeia o que fez os companheiros mostrarem-se sentidos, a princípio, para logo depois gostarem, pois enquanto o colega estava preso eles seriam procurados para os negócios, era um concorrente a menos.

Caracteriza o chefe das milícias, único personagem rigorosamente histórico da narrativa, e expõe o castigo exemplar aplicado aos supersticiosos, que receberam chibatadas e foram obrigados a dançar várias vezes.

VI – Primeira noite fora de casa - Assim que deu por falta do afilhado, o compadre, todo aflito, pôs-se a procurar pela vizinhança, mas ninguém tinha notícias do menino. Lembrou-se então da via-sacra e pôs se a percorrer as ruas. Indagando, perguntava a todos que encontrava pela rua, o paradeiro do seu tesouro. Quando chegou ao Bom-Jesus, informaram-lhe terem visto três endiabrados que foram expulsos da igreja. Essa era a única pista que tinha.

Retornou a sua casa e ao indagar novamente a vizinha, exasperou-se quando esta lhe respondeu que o menino tinha maus bofes e que a história não teria um bom final.
O pobre homem passou a noite em claro e decidiu, antes de pedir ajuda ao Vidigal, esperar mais um dia.
Enquanto o compadre dá esse prazo, o narrador conduz o leitor ao paradeiro do menino.

Junto com os emigrados de Portugal, veio também para o Brasil, a praga dos ciganos, gente ociosa e sem escrúpulos, tão velhacos que quem tivesse juízo não se me tia com eles em negócios; quanto a poesia de seus costumes e crenças, deixaram do outro lado do oceano, trazendo para cá, apenas os maus hábitos. Viviam quase na ociosidade, não tinham noite sem festa. Moravam ordinariamente nas ruas populares e viviam em plena liberdade.
Os dois meninos, com quem o pequeno fizera amizade, eram de uma família dessa gente e acostumados à vida à toa, conheciam toda a cidade, percorriam-na sós. Após se conhecerem na via-sacra, carregaram o pequeno para a casa dos pais. Pelo caminho o menino ainda teve escrúpulos de voltar, mas decidiu seguir os dois e ir até onde iriam. Lá, como era de se esperar, havia uma festa para o santo de sua devoção.
Daí a pouco começou o fado e o menino, esquecido de tudo pelo prazer, assistiu a tudo enquanto pôde; mas ao chegar o sono, reuniu-se com os companheiros em um canto e adormeceram embalados pela música e sapateado.
Acordou sobressaltado e pediu aos companheiros que o levasse para casa.
Quando o padrinho ia recomeçar a busca, esbarrou no afilhado e ao interrogá-lo, ele respondeu que como queria que ele fosse padre, tinha ido ver um oratório.
O padrinho, não resistiu à ingenuidade do afilhado e sorrindo levou-o para dentro.

Leonardo desaparece em meio a uma procissão e, acompanhado de dois meninos de rua, vai parar num acampamento de ciganos. Segue-se a caracterização da dança do fado. Graças à comadre, Leonardo Pataca é posto em liberdade.

VII – A comadre - Vale agora falar um pouco de uma personagem que desempenhará um importante papel ao longo da história: é a comadre, a parteira e madrinha do memorando.
Era uma mulher baixa, gorda, bonachona, ingênua ou tola até certo ponto, e fina até outro. Vivia do ofício de parteira e de benzedeira. Era conhecida como beata e papa-missas.
O seu traje habitual era como já se esperava, igual ao de todas as mulheres da sua condição e esfera: uma saia preta que se vestia sobre um vestido qualquer; um lenço branco muito teso e engomado ao pescoço; outro na cabeça; um rosário pendurado no cós da saia e um raminho de arruda atrás da orelha, tudo isto coberto por uma clássica mantilha, junto à renda da qual se pregava uma pequena figa de ouro ou de osso.
O uso da mantilha era um arremedo espanhol e segundo o narrador era uma coisa poética, pois revestia as mulheres certo mistério, realçava lhes a beleza, mas a mantilha das mulheres brasileiras era muito mais prosaica do que se podia imaginar, principalmente usadas por gordas e baixas. As mantilhas usadas nas brilhantes festas religiosas, nem se fala, pois a igreja tomava um ar lúgubre ao se encher daqueles vultos negros que se uniam e cochichavam a cada momento.
Apesar de tudo, a mantilha era o traje mais conveniente da época, posto que as ações dos outros, era o principal cuidado de quase todos, era necessário ver sem ser visto. Funcionava como um observatório da vida alheia.
O fato de ser parteira, beata e curandeira, tomava-lhe muito tempo, tanto que fazia tempo que não via nem sabia nada do compadre, Leonardo, Maria e do afilhado, até que um dia na Sé, ouviu as beatas comentarem sobre Maria ter apanhado de Leonardo, ter fugido com um capitão e o filho, um mal-educado, ter ficado com o barbeiro.

Ao ouvir a história, pôs-se rumo à casa do barbeiro, lá chegando questionou o fardo deixado para o homem carregar. Após ter respondido ao interrogatório da comadre, pôs-se a defender o pequeno, dizendo que ele era bom, gentil e ter intenções de ser padre.
A comadre não concordou como compadre e retirou-se.
A partir desse dia, a comadre sempre aparecia na casa do compadre.
O padrinho, não desistindo de seus sonhos, pôs se a ensinar o ABC ao afilhado, que empacava no F.
Após apresentar a comadre, o narrador volta a informar o paradeiro de Leonardo.

O narrador detém-se na caracterização da parteira, misto de beata e fofoqueira, de parteira e benzedeira, sempre atenta às fofocas e cochichos das beatas.



VIII – O pátio dos bichos - No palácio Del-Rei, conhecido nos tempos do narrador como paço imperial, existia no saguão, uma saleta, conhecida com salão dos bichos, apelido dado em conseqüência de seu uso: diariamente, passavam por ele três ou quatro oficiais superiores velhos, incapazes para a guerra e inúteis para a paz, eram pouco usados pelo rei, logo passavam ociosos à maior parte do tempo. Dentre eles, destaca-se um português, era tenente-coronel. A sua importância na história e que foi ele quem a comadre procurou para pedir a libertação de Leonardo.
Após ouvi-la, o velho colocou o chapéu armado, pôs a espada à cinta e saiu. Em breve, saber-se-á do resultado.

Caracterização da sala onde ficam os oficiais do reino, à espera das ordens reais. A comadre intercede junto ao tenente-coronel em favor do velho meirinho.


IX – O arranjei-me do compadre - Aqui, o narrador revelará alguns fatos da vida do compadre, até agora desconhecidos: o compadre nada sabia de seus pais ou parentes e quando jovem, achou-se na casa de um barbeiro, não sabia se estava lá como filho ou agregado; não só cuidava do barbeiro como também herdara dele a profissão.
Já adolescente, sabia barbear e sangrar sofrivelmente e como jamais conseguiria se estabelecer com essa profissão, visto que o sucesso e fregueses cabiam ao seu mestre, saiu sem rumo. Como todo barbeiro é tagarela, conheceu um marujo que acabou colocando-o a bordo, como barbeiro e sangrador.
A bordo, ganhou fama quando sangrou e curou dois marujos doentes e com sua lanceta não deixou nenhum negro do carregamento morrer. Com a cura, ganhou o respeito de todos e foi promovido de oficial barbeiro para médico.
Poucos dias antes de chegar ao Rio, o capitão do navio adoeceu e nem com a quarta sangria ele melhorou.
O capitão, de quem se tornara amigo, “chamo-o à parte, e em segredo lhe fez entrega de uma cinta de couro e uma caixa de pau pejadas de um bom par de doblas em ouro e prata, pedindo que fielmente as fosse entregar, apenas chegasse a terra, a uma filha sua, cuja morada lhe indicou. (...) Poucas horas depois expirou”. A partir daí, o barbeiro já não sangrava mais como antes e decidiu não embarcar mais. Quanto à história do capitão, sequer havia testemunhas então, o compadre “decidiu-se a instituir-se herdeiro do capitão, e assim o fez”.
Foi assim que ele se arranjou na vida.

Retomando uma intervenção antecipada que o narrador faz no capítulo III, apresenta-se, agora, a origem do patrimônio do compadre barbeiro, que se apropriou das economias do capitão do navio que o trouxe para o Brasil, em vez de entregá-las, como prometera, à filha.

X – Explicações - O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso, bom e de estar numa idade inofensiva, tinha um sofrível par de pecados da carne, tanto que aos 36 anos havia deixado em Lisboa, um filho. Aos 20 anos era um cadete desordeiro, jogador e insubordinado. Deixava o pai, um homem de respeito, desesperado.
Poucos dias antes de embarcar para o Brasil, em companhia de El-rei, o infeliz pai foi procurado por uma mulher velha, baixa, gorda e vermelha, vestida, segundo o costume das mulheres da mais baixa classe do seu país: um vestido de chita e um lenço branco, triangular sobre a cabeça e preso embaixo do queixo. Ela estava nervosa e agitada, seus lábios franzinos e franzidos estavam apertados um contra o outro, como se segurassem uma torrente de injúrias. Assim que chegou encarou o capitão, era esse o posto do velho tenente-coronel na época, olhou-o com ar resoluto e enfurecido, fazendo-o, instintivamente, dar um passo atrás.
Ela, colocando as mãos nas cadeiras e chegando a boca bem perto do rosto do capitão, logo já se pôde deduzir: o problema era com o filho do capitão que se pôs a namorar Mariazinha, filha da velha nervosa. Segundo a mulher, foi namoro pra lá, namoro pra cá e...
O capitão foi às nuvens. A mulher ainda afirmou que o rapaz havia prometido casamento a filha.
Após pensar um segundo, viu que não poderia deixar o filho casar-se com a filha de uma colareja e além do mais, o que ele ganhava como cadete não era suficiente para o rapaz sustentar uma família. Então, o capitão disse à mulher que pensaria no caso.
O capitão, em apuros, procurou a mulher e ofereceu alguma coisa para que ela se calasse e não estourasse.
Não deu para ele pensar muito no assunto, pois havia chegado a hora. Então, deixando o filho aos cuidados de conhecidos, partiu.
Já no Brasil, anos depois, soube que a tal Mariazinha estava no Rio de Janeiro, em companhia de Leonardo. Era a Mariazinha, a famosa Maria-da-Hortaliça.

A libertação de Leonardo Pataca da prisão se deu a partir de um favor: o pai de nosso herói pediu à comadre que fosse conversar com um velho militar da guarda do rei. Esse homem entra na história porque tinha um filho que na mocidade seduziu a primeira mulher de Leonardo, Maria. Assim, como forma de remediar a situação do filho, o velho militar procurou “fazer o que pudesse por ela para satisfazer todos os seus escrúpulos de pai horando”, já que tinha convencido Maria a não se casar com seu filho. “Nunca porém teve ocasião de exercer a sua boa vontade diretamente para com ela”, mas com Leonardo.

Sabe-se agora o porquê de o velho tenente-coronel prometer ajudar Leonardo: acontece que o velho, procurando satisfazer o seu escrúpulo de pai honrado, fazia o que podia pela moça que seu filho havia desonrado. Em segredo havia feito um trato com a comadre, ou seja, qualquer necessidade que Maria da Hortaliça sofresse, ele supriria, bastaria que a comadre o informasse.
Como a comadre o ajudava, ele deveria ajudá-la, é essa troca de favores que fez, assim que falou com a comadre, dirigir-se à cadeia e após ouvir a história vinda da boca de Leonardo, dirigiu-se à casa de um amigo, um fidalgo.
Em poucas palavras o tenente-coronel pôs-lhe a par de tudo e o fidalgo prometeu ajudar.
O velho tenente-coronel, satisfeitíssimo pôs-se rumo à cadeia a fim de contar a novidade a Leonardo.

Em retrospectiva, o narrador revela a relação entre o tenente-coronel e a Maria da Hortaliça, desvirginada por seu filho. Daí a sua generosidade para com o velho Leonardo.


XI – Progresso e atraso - Após todas essas explicações, apresentações e origem dos personagens, o narrador volta a se concentrar no memorando, ou seja, em Leonardo, afilhado do barbeiro, pois a última vez que fora mencionado estava encalhado no F e agora já está no P, de novo empacado, mas o progresso do menino havia deixado o padrinho muito contente. O difícil era fazê-lo decorar o padre-nosso, em vez de dizer “venha a nós o vosso reino”, ele dizia: “venha a nós o pão nosso”. O maior suplício para o menino era ir à missa ou ao sermão.
Mesmo assim, enquanto todos viam em Leonardo um grande peralta, principalmente a vizinha, o padrinho não perdia as esperanças de vê-lo um clérigo.

Era a tal vizinha uma dessas mulheres que se chamam de faca e calhau, valentona, presunçosa, e que se gabava de não ter papas na língua: era viúva, e importunava a todo o mundo com as virtudes do seu defunto. Ela não perdia tempo em desmentir o vizinho em suas esperanças a respeito do afilhado.
Certo dia, o barbeiro não suportou mais, pois certo dia, ao chegar à loja, a vizinha, à janela, perguntou-lhe, em zombaria, onde estava o seu reverendo.
O barbeiro, vermelho, foi às nuvens e quando ela perguntou se o menino já sabia o padre-nosso, o homem não aguentou e exasperando-se respondeu que, o menino já sabia e que ele o fazia rezar todas as noites para seu marido que estava dando coices no inferno.
A mulher retrucou e chamou-o de raspa-barbas.
A discussão foi longe.
Quando o compadre perguntou a mulher o porquê de ele implicar tanto com uma criança que nunca havia lhe feito mal, ela respondeu que ele vivia jogando pedras no telhado, fazia-lhe caretas e a tratava como se fosse uma saloia ou mulher de barbeiro.
O menino ao ouvir tanto estardalhaço, pôs-se a porta e começou a arremedá-la. O compadre achou tanta graça que se sentiu vingado e desatou a rir.
Enquanto a discussão termina, o narrador aproveita para informar que o barbeiro sabia da prisão de Leonardo, mas não se importava.

Assim que o velho tenente-coronel colocou Leonardo na rua, decidiu tomar Leonardo para a sua proteção, acreditando que se conseguisse felicitá-lo, lavaria o seu filho do pecado; tanto que pediu à comadre que oferecesse ao compadre seu préstimo para o pequeno, chegou a pedir que o deixasse ir para a sua companhia.
O compadre recusou e disse que era a sua função, para tampar a boca da vizinhança, transformar o menino em gente.
Detém-se, desde o início, na vida escolar do memorando, que desencalhara do F, mas encalhara no P. O barbeiro e a vizinha, que têm opiniões opostas sobre o caráter de Leonardo, discutem, e o menino, para satisfação do padrinho, ridiculariza a vizinha, imitando-a.


XII – Entrada para a escola -

Para evitar repetir a história das mil travessuras do menino, que exasperaram a vizinhança e desgostaram a comadre sem reduzir a amizade entre o barbeiro por seu afilhado, o melhor e informar que os progressos do menino agradavam o padrinho, pois o pequeno já lia, sofrivelmente e aprendera a ajudar na missa.
Preocupado com o futuro da criança foi procurar um mestre. Era este um homem todo em proporções infinitesimais, baixinho, magrinho, de carinha estreita e chupada, excessivamente calvo; usava de óculos, tinha pretensões de latinista, e dava bolos nos discípulos por dá cá aquela palha. Era um dos mais acreditados na cidade. O barbeiro entrou acompanhado do afilhado. Era sábado, os bancos estavam cheios de crianças; os dois entraram exatamente na hora da tabuada cantada, uma espécie de ladainha de números. Era monótono e insuportável, mas os meninos gostavam.
As vozes dos meninos, acompanhadas pelos passarinhos nas gaiolas, faziam uma algazarra de doer os ouvidos.
Na segunda-feira, lá estava o menino, munido de sua pasta a tiracolo, a sua lousa e o seu tinteiro de chifre. Logo no primeiro dia levou quatro bolos, que fez Leonardo declarar guerra viva à escola.
Na saída, assim que viu o padrinho, disse-lhe que não voltaria mais à escola, não queria ter que apanhar para aprender.
O barbeiro ficou contrariado temendo que a maldita vizinha soubesse que o menino havia apanhado no primeiro dia de escola, mas o pequeno só concordou em retornar caso o padrinho falasse ao mestre para não lhe bater mais. O padrinho, a fim de persuadi-lo, concordou.
O menino entrou na escola desesperado e como não ficasse quieto ou calado, foi colocado de joelhos e nessa posição foi surpreendido atirando uma bolinha de papel nos colegas; resultado: doze bolos, o que fez o menino despejar sobre o mestre, todas as injúrias que sabia.
Segundo o barbeiro, os dezesseis bolos do primeiro dia deviam-se a praga que a vizinha deveria ter jogado, mas ele venceria.

Leonardo já lia soletrando sofrivelmente. Logo no primeiro dia de escola, pela manhã, recebeu quatro bolos de palmatória por derrubar um tinteiro na calça do colega e rir do mestre; à tarde foram mais doze bolos, por não parar quieto e por atirar um bolo de papel que quase atingiu o mestre. O narrador caracteriza os métodos educacionais da época e termina quando Leonardo abandona a escola.

XIII – Mudança de vida - Foi com muito sacrifício que o compadre conseguiu fazer o menino freqüentar a escola por dois anos, levando bolos todos os dias. Apesar de o mestre sustentar a fama de cruel, na verdade os bolos eram merecidos, pois o menino era da mais refinada má-criação, sempre desobedecia a tudo que lhe era ordenado.
Não parava quieto.
Nunca uma pasta, um tinteiro, uma lousa lhe durou mais de 15 dias, era um velhaco que vendia aos colegas tudo o que podia ter algum valor, empregando o dinheiro que conseguia, do pior modo que podia.
No quinto dia de escola disse ao padrinho que já sabia ir sozinho, este acreditou e o afilhado, então somou mais um apelido ao de apanha bolos mor, era o de gazeta mor.
O lugar que mais ficava quando cabulava aulas era a igreja da Sé, pois reunia-se gente e várias mulheres com mantilha, de quem tomara certa raiva por causa da madrinha. Lá, no meio da multidão, não o encontrariam se o procurassem.

Como não saía da igreja, fez amizade com um pequeno sacristão tão peralta quanto ele, conseguiam se comunicar apenas com troca de olhares.
Essa vida durou muito tempo, até que o padrinho voltou a acompanhá-lo. O menino decidiu que seria muito agradável acompanhar o colega sacristão, afogando em ondas de fumaça a cara da velha que chegasse mais perto e para isso comunicou ao compadre o seu desejo de freqüentar a igreja, tinha nascido para aquilo. Para o padrinho, foi à maior alegria quando ouviu o menino pedir que lhe fizesse sacristão.
“Tantas foram as rogativas e argumentos do pequeno, que (o padrinho) se viu obrigado a ceder. O menino tinha nisso duas enormes vantagens: satisfazia seus desejos e saía da escola.”
Em poucos dias aprontou-se, e em uma bela manhã saiu de casa vestido com a competente batina e sobrepeliz, e foi tomar posse do emprego. Ao vê-lo passar a vizinha dos maus agouros soltou uma exclamação de surpresa a princípio, supondo alguma asneira do compadre; porém reparando, compreendeu o que era, e desatou uma gargalhada e ao chamá-lo de Sr. Cura, o menino respondeu-lhe que seria e haveria de curá-la.
Era aquilo uma promessa de vingança.
O menino chegou à Sé impando de contente, a batina era como um manto real e foi na maior seriedade que entrou na função de sacristão. Já no dia seguinte, o negócio era outro: durante a missa cantada ele ficou com a tocha e o amigo, com o turíbulo, quando de repente, para infelicidade da vizinha, a quem o menino prometera curar, sem pensar, colocou-se junto aos dois e bastou uma troca de olhar para se colocarem em distância e lugar conveniente: enquanto um, tendo enchido o turíbulo de incenso, e balançando-o convenientemente, fazia com que os rolos de fumaça que se desprendiam fossem bater de cheio na cara da pobre mulher, o outro com a tocha despejava-lhe sobre as costas da
mantilha a cera derretida, a mulher ao exasperar-se ouviu o menino dizer que estava lhe curando. Como a igreja estava apinhada de gente, ela teve que suportar o suplício até o fim. Terminada a missa queixou-se ao mestre-de-cerimônias e os dois ganharam uma tremenda sarabanda.


Com dois anos de escola, Leonardo consegue “ler mal e escrever pior”. Desobediente, irreverente, destruidor de material e velhaco, pois vendia tudo o que conseguia, é apelidado de “gazeta mor”, “apanha bolos mor”. Na Igreja da Sé, faz amizade com o pequeno sacristão, e encontra na vida de coroinha um campo mais vasto para suas diabruras. O compadre imagina que este fosse um bom caminho para inseri-lo na vida religiosa. Já de início, o menino vinga-se da vizinha jogando incenso em seu rosto e derramando-lhe cera de vela derretida na mantilha.



XIV – Nova vingança e seu resultado - Apesar de os meninos não se importarem com a sarabanda, não perdoaram o mestre-de-cerimônias por tê-los humilhado em frente da vítima e resolveram desforrar e foi o caso assim: o pobre homem era um padre de meia idade formado em Coimbra na mais austeridade da igreja católica, poderia fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro; pois apesar de, aparentemente, buscar por assunto a honestidade e a pureza corporal, a sua essência era sensual, fato que muitos ignoravam, que o padre “vivia há certo tempo em estreitas relações, salvando, é verdade, todas as aparências da decência” com a ex-amante de Leonardo Pataca, mas os dois pequenos estavam por dentro de tudo. Já fazia três ou quatro dias que o padre não saía por estar decorando o sermão, um sacristão foi incumbido de lhe avisar quando chegasse a hora. E os meninos não perderam tempo, o pequeno dirigiu-se a casa e após bater, perguntou, em voz alta, pelo sacristão.
A cigana mandou-o entrar e ele em vez de dizer nove, disse dez horas.
No dia seguinte, às nove horas começou a festa e nada do pregador aparecer, o que fez um capuccino italiano, por bondade, oferecer-se para improvisar o sermão, já havia começado quando o mestre entrou e ambos começaram a disputar o púlpito. Assim que terminou, o mestre-de-cerimônias dirigiu-se ao menino que se defendeu dizendo que a cigana com quem ele estava era testemunha de que ele havia dito que o sermão seria às nove. O Oh! Que soltaram foi geral, mas o homem desmentiu.
Terminada a festa despediu o menino que nem se importou.

O mestre de cerimônias é o padre libidinoso que mantém relações com a cigana que abandona Leonardo Pataca. Era “de fornecer a Bocage assunto para um poema inteiro”. Leonardo o faz perder a hora para um sermão importante e o faz revelar sua relação com a cigana.

XV – Estralada - Quando Leonardo já havia se esquecido da cigana, descobriu que ela era amante do mestre-de-cerimônias e resolveu procurá-la para salvar sua alma, mas ela disse ter sido procurada por vários meirinhos, mas nenhum havia lhe agradado. Então, após ter desejado uma estralada para a mulher, retirou-se jurando vingança.
Leonardo contratou Chico-Juca que ganhava para dar pancada e o dia de colocá-lo em ação seria no aniversário da cigana. Após acertar tudo com o brigão, procurou o major Vidigal para falar sobre a festa. O plano deu tão certo que quando os soldados do Vidigal foram revistar o quarto, tiraram de lá, nada menos que o mestre-de-cerimônias em ceroulas, meias pretas e sapatos afivelados. Sem perdão, o padre foi para a casa da guarda.

Leonardo Pataca investe, por seu lado, contra a cigana e seu novo amante, o padre. No aniversário dela, descobre que o padre estará presente e contrata o capoeira, Chico-Juca para criar confusão, avisando de antemão o Major Viidigal. O padre acaba preso, de ceroulas, em situação comprometedora.

XVI – Sucesso do plano - O mestre-de-cerimônias não chegou ao xilindró, pois o Vidigal quis apenas dar-lhe um susto. Como era de se esperar, a notícia correu rapidamente e logo depois, todo envergonhado, ele seguiu para casa.
Enfim, Leonardo e a cigana reataram o romance, para desgosto da comadre que tentava enfiar-lhe a sobrinha.
Já o ex-sacristão, para desgosto do compadre, ainda estava com o seu destino incerto.

Depois da prisão, o padre abandona a cigana; Leonardo Pataca volta a conquistá-la e passam a viver juntos.

XVII – D. Maria - Num dia de procissão, o barbeiro, o afilhado, a comadre e a vizinha dos maus agouros estavam hospedados na casa de D. Maria, uma mulher muito velha e muito gorda, era rica, religiosa e caridosa.
Lá, o menino ouviu a vizinha falando dele para a madrinha e como vingança, pisou na barra da saia da mulher que ao se levantar, rasgou em quatro palmos; a única atitude do barbeiro foi rir.
Ali, todos discutiam o destino do menino e ao saírem, D. Maria pediu ao compadre que voltassem para falarem sobre o menino.

Após a caracterização minuciosa das procissões da época, inclusive com a presença de uma ala de baianas, como nos carnavais de hoje, o narrador focaliza a figura de D.Maria: gorda, de bom coração, devotada aos pobres e à religião, e às demandas forenses que eram a sua paixão. O barbeiro e seu sobrinho passam a freqüentá-la.

XVIII – Amores - Alguns anos depois, o menino tornou-se um vadio-mestre, vadio-tipo, levando o padrinho ao mais completo desespero.
A comadre conseguiu o que queria, Leonardo Pataca havia se arranjado com a sobrinha.
D. Maria havia envelhecido sofrivelmente e era, na época, tutora de sua sobrinha que estava órfã.
As demais personagens continuam do mesmo jeito.
O memorando, agora adolescente, passou a ser tratado pelo nome, o mesmo do pai, Leonardo. O jovem estava apaixonado por Luisinha, a sobrinha de D. Maria.
Quando Leonardo a viu pela primeira vez, não conteve o riso: era já muito desenvolvida, porém ainda não tinha adquirido a beleza de moça: era alta, magra, pálida: andava com o queixo enterrado no peito, trazia as pálpebras sempre baixas, e olhava a furto; tinha os braços finos e compridos; o cabelo, cortado, dava-lhe apenas até o pescoço, e como andava mal penteada e trazia a cabeça sempre baixa, uma grande porção lhe caía sobre a testa e olhos, como uma viseira.
Mesmo tendo rido de Luisinha, quando o padrinho anunciou a nova visita à D. Maria, o jovem pulou de alegria, foi o primeiro a ficar pronto e lá foram os dois para o seu destino.

Leonardo já entrara na vida adulta. É um “completo vadio, vadio mestre, vadio tipo”. A partir deste capítulo, o narrador especifica que o nosso memorando passa a ser chamado apenas pelo prenome, Leonardo, e seu pai passa a ser designado por Leonardo Pataca. Entra em cena Luisinha, sobrinha e tutelada de D.Maria, meio desajeitada, mas que impressiona Leonardo.

XIX – Domingo do Espírito Santo - Como era Domingo de Espírito Santo, ao chegarem à casa de D. Maria, encontraram todos à janela.
Desta vez, ao ver a moça de branco e com os cabelos, penteados, não conseguiu rir, mas sim apreciar a figura da moça. Ela, por sua vez, continuava em seu inalterável silêncio e concentração. Mais tarde, os quatro iriam ver os fogos.
Após minuciosa caracterização da festa do Divino Espírito Santo, o narrador se entretém em focalizar a paixão nascente de Leonardo por Luisinha.

XX – O fogo no campo - Luisinha estava atônita no meio de todo aquele movimento, mas Leonardo a puxava pelo braço. Para deleite de Leonardo, após a queima de fogos, os dois voltaram de mãos dadas.

Durante o foguetório, Leonardo ousa pegar na mão de Luisinha, o que, pelos usos da época, era o começo de uma relação íntima.

XXI – Contrariedades - Como aqui se faz e aqui se paga, chegou a hora de Leonardo pagar os seus tributos: o rapaz estava amando Luisinha, cujo comportamento voltara ao antigo estado de letargia, fato que fez o jovem sofrer grande contrariedade e fingindo desprezo que era despeito, murmurou um - que me importa!
A situação só mudou de figura quando o padrinho e o afilhado depararam com um desconhecido na casa de D. Maria. Era um homenzinho de mais ou menos trinta e cinco anos, magro, narigudo e de olhar penetrante, recém chegado da Bahia; era o Sr. José Manuel e “quem olhasse para a cara do Sr. José Manuel assinava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser. Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara”. Era uma crônica viva e escandalosa, sempre que podia desfiava um discurso de duas horas sobre a vida alheia. Padrinho e afilhado nutriam pelo homenzinho, desde a primeira vez que o viram, uma grande antipatia.
Assim, foi o instinto que fez com que Leonardo visse nele um inimigo. “Afinal o negócio aclarou-se. D.Maria era, (...), rica e velha; não tinha outro herdeiro senão sua sobrinha; se morresse D.Maria, Luisinha ficaria arranjada, e como era muito criança e mostrava ser muito simples, era uma esposa conveniente a qualquer esperto que se achasse, como José Manuel, em disponibilidade; esse pois fazia a corte à velha com intenções na sobrinha”.

Leonardo se vê muito apaixonado, mas aparece um rival, José Manuel, interessado no dote da menina, única herdeira de D.Maria.

XXII – Aliança - A presença de José Manuel desagradava aos dois homens, e ele já havia percebido que os dois não gostavam dele. Leonardo amava Luisinha e o padrinho via na moça um excelente meio de vida para o rapaz.
Tamanha era a preocupação do compadre que ele foi falar com a comadre que ficou de falar com D. Maria. Foi assim que se formou uma aliança entre o compadre e a comadre para derrotarem o concorrente de Luisinha.

O compadre e, especialmente, a comadre armam um plano contra José Manuel e a favor de seu protegido.

XXIII – Declaração - Enquanto a comadre tecia planos para derrotar o rival do afilhado, este ardia em ciúmes. Para a sua sorte, Luisinha ignorava tudo e continuava indiferente.
Leonardo, por sua vez, temendo que o compadre e a comadre derrotassem seu rival e ele não pudesse entrar em combate, tentou agir por conta, mas cada vez que ficava a sós com Luisinha, dava-lhe um tremor de pernas que mal conseguia ficar de pé ou articular qualquer palavra. Certa ocasião, a moça estava em pé, perto da janela e ele se aproximou ficando como a uma estátua atrás dela, quando ela se virou, a única reação do rapaz foi a de fazer uma careta; por fim criou coragem e disse-lhe que a queria muito bem; esta por sua vez, ficou cor de cereja e desapareceu pelo corredor.

Finalizando a primeira parte do livro, o autor narra de modo cômico a declaração de Leonardo a Luisinha, pressionado pelo rival e após muitas tentativas e retrocessos.

XXIV – A comadre em exercício – Leonardo Pataca estava todo feliz, pois do seu relacionamento com Chiquinha, a sobrinha da comadre, nasceu uma pequerrucha, oposta ao irmão, pois era mansa e risonha.

Descreve o trabalho da parteira junto a Chiquinha, amásia do velho Leonardo.

XXV – Trama - Quando a comadre não estava ocupada fazendo partos, ocupava-se em desconceituar José Manuel para D. Maria. Então, começou a contar que uma moça muito rica, que vivia com a mãe orando no Oratório de Pedra, havia enchido uma meia preta com jóias e fugido com um homem, o mistério é que ninguém sabia quem era o tal; então, a comadre, aproveitando-se da curiosidade da outra, após fazê-la jurar não contar nada a ninguém, disse que o homem era José Manuel.

A comadre inventa para D.Maria que o rival de Leonardo, José Manuel, fora o raptor de uma moça no Oratório da Pedra, transformando-o no principal suspeito de rumoroso caso policial.

XXVI – Derrota - D. Maria ficou chocada e a comadre satisfeita com o resultado. A fofoca foi interrompida pela chegada de José Manuel, que nem bem havia entrado e começou a falar que andava muito ocupado com uns arranjos, mas não podia falar, pois era segredo. As duas trocaram olhares significativos.
Luisinha, desde a declaração de Leonardo sofreu mudanças significativas tanto físicas quanto psicológicas, passou a erguer os olhos, a falar, a mover-se.
De tanto as duas senhoras cutucarem, José Manuel concordou em falar-lhes do seu negócio (não se pode esquecer de que ele era mentiroso) desde que elas fossem discretas; disse-lhes que havia sido chamado para ir ao palácio, mas assim que a comadre saiu D. Maria quis saber sobre a moça que ele havia roubado, mas o homem jurou e tresjurou que não tinha nada a ver com aquilo, mas D. Maria estava inflexível, resultado: José Manuel saiu na carreira.

D.Maria cai na intriga da comadre e rompe com José Manuel, que tenta descobrir quem é que o indispunha com a tutora de Luisinha.

XXVII – O mestre-de-reza - Depois do acontecido na casa da D. Maria, José Manuel reconheceu que tinha ali um inimigo e que o motivo seria a sua pretensão à mão de Luisinha, só faltava saber quem.
Rapidamente José Manuel pôs mãos à obra, ou seja, da mesma forma que Leonardo tinha seus protetores, ele teria um; para tanto, recorreu ao mestre-de-reza de D. Maria, que tinha fama de casamenteiro.
O mestre-de-reza entrou em ação logo à noite, pois enquanto conversava com D. Maria, disse-lhe que sabia quem havia roubado a moça.

Cego, o professor de catecismo passa a ser o procurador de José Manuel junto a D.Maria, para desfazer a intriga da comadre.

XXVIII - Transtorno - Enquanto José Manuel agitava a casa de D. Maria, a vida de Leonardo agitava-se tristemente, pois o seu padrinho adoecera. Como D. Maria não conseguiu curá-lo, chamaram o velho da botica que prometeu curá-lo com umas pílulas. A comadre não gostou da idéia das pílulas, chegou até a franzir a testa, pois disse que nunca tinha visto quem as tomasse escapar vivo.
A comadre tinha razão até certo ponto, pois três dias depois o compadre morreu. Na casa do falecido, Leonardo, todos os amigos, vizinhos e conhecidos estavam em prantos.
Quando todos se foram, enquanto Leonardo e Luisinha conversavam. D. Maria e a comadre foram procurar o testamento do compadre e encontraram.
Leonardo era o herdeiro universal do padrinho; quando Leonardo Pataca ficou sabendo, apresentou-se para tomar conta do filho, mas este não gostou, pois se lembrou do pontapé, mas mesmo assim teve que acompanhá-lo e encontrar-se com a irmã e Chiquinha.
Leonardo Pataca não só cuidou do testamento como também ficou com tudo; não se pode esquecer-se de que além dos mil cruzados, tinha ainda aquele dinheiro do capitão do navio que ele “pegou”.
Nos primeiros dias tudo foram flores, a família estava novamente unida: Leonardo Pataca, Leonardo, a irmã e a comadre.
Agora, somente Leonardo e a comadre continuavam as visitas à D. Maria.
A paz familiar durou pouco, pois Leonardo não simpatizava com Chiquinha e esta começou a embirrar com Leonardo, resultado: na casa era a maior balbúrdia.



Morre o companheiro barbeiro e Leonardo recolhe-se à casa do pai, passando a morar junto com Chiquinha e o recém nascido.

XXIX - Pior transtorno - Leonardo, após ficar grande tempo na casa de D. Maria sem ver a amada, entrou em casa de mal com a vida e ao se sentar jogou a almofada de Chiquinha no chão; esta por sua vez chamou-o de namorado sem ventura e ele não se fez de rogado, espumando de cólera avançou em Chiquinha que lhe disse ter raça de saloio.
Como Leonardo Pataca estava em casa foi acudir e armado do espadim embainhado, atirou-se sobre o filho, chegou D. Maria e apesar de tomar partido do jovem, a única coisa que pôde fazer foi sair à sua procura, pois o pai o havia expulsado de casa.

Leonardo e Chiquinha se desentendem. O velho Pataca assume o partido da mulher, interfere de espadim em riste contra o filho, que foge desencabrestado “pondo dez léguas por hora”, só da lembrança do pontapé que levara na infância.

XXX - Remédio aos males - Após o carreirão que levara, o pobre rapaz, vagando pela cidade e pensando em Luisinha e no rival, chegou ao Cajueiro.
Gargalhadas vindas de uma moita tiraram-no do devaneio, procurou e encontrou um grupo de moças e moços sentados em uma esteira jogando baralho.
Com o estômago roncando, ia se afastando quando um deles o chamou, era o seu antigo camarada, Tomás, aquele menino sacristão da Sé. Este apresentou-lhe a irmã, Vidinha, uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a fala era um pouco descansada, doce e afinada. Por ser cantora de modinhas, pôs-se a cantar:

Se os meus suspiros pudessem
Aos teus ouvidos chegar,
Verias que uma paixão
Tem poder de assassinar.
Não são de zelos
Os meus queixumes,
Nem de ciúme
Abrasador;
São das saudades
Que me atormentam
Na dura ausência
De meu amor.

Leonardo ouviu a música boquiaberto e nunca mais tirou os olhos da cantora.

Leonardo reencontra seu antigo camarada sacristão, Tomás da Sé, companheiro de diabruras, e se junta à sua súcia. Conhece a mulata Vidinha, com 18 a 20 anos, cantora de modinha e tocadora de violão. Apaixona-se por ela.

XXXI - Novos amores - Já na casa do amigo, enquanto o jovem pensava em Luisinha, José Manuel e Vidinha e, ouvia mais uma música da bela cantora:

Duros ferros me prenderam
No momento de te ver;
Agora quero quebrá-los,
É tarde não pode ser.

Este último passo acabou de desorientar completamente o Leonardo: reconheceu que havia se inclinado um só instante por Luisinha, mas estava apaixonado por Vidinha, mas eram duas irmãs com três filhos e três filhas que moravam numa mesma casa, logo, havia três casais de primos completos, mas dois gostavam de Vidinha, resumindo: Leonardo tinha mais dois rivais, mas sem ter para onde ir, passou a noite ali e agregou-se “àquela gente”.


Leonardo agrega-se à “sua gente”. Sua nova família é formada por duas irmãs viúvas, uma com três filhos ferroviários e a outra com três filhas, sendo uma delas, Vidinha. Há ainda agregados e vizinhos, que se tornam os novos companheiros das patuscadas.

XXXII – José Manuel triunfa - Enquanto a comadre procurava Leonardo por toda a parte, o jovem ouvia modinhas. Cansada, a comadre acaba indo à casa de D. Maria. Lá, tudo que a comadre falava do afilhado, defendendo-o, D. Maria não concordava, acusava-o; algo estranho acontecia: José Manuel, aliado ao mestre-de-rezas, venceram.
O velho conseguiu inocentar José Manuel e este tinha aprovação de D. Maria para ser pretendente de Luisinha.

A intriga da comadre é desfeita pelo mestre de reza, que a desmascara perante D.Maria.

XXXIII – O agregado - Algumas semanas depois, Leonardo já era agregado na casa de Tomás da Sé, mas certo dia, ao ser surpreendido abraçado com Vidinha, acabou se atracando com um dos enamorados pela moça.
Como parecia ser sua sina viver como o Judeu Errante, já ia se pondo a andar, quando a comadre o encontrou.

Instalado na casa de Tomás da Sé como agregado, Leonardo provoca rivalidade com um dos primos, que desanda em grossa pancadaria. Leonardo decide sair da casa, mas as velhas não consentem.

XXXIV – Malsinação - As três velhas, após longa conversa, tornaram-se amigas e a tormenta dos três briguentos cessou e a comadre, cada vez que tentava fazer o afilhado voltar para casa, às duas velhas se metiam, até que, para a alegria de Vidinha, Leonardo resolveu ficar.
A comadre ia regularmente visitar Leonardo e as duas novas amigas. Tudo ia às mil maravilhas, porém os dois primos despeitados tramavam e tramavam algo.
Os dois colocaram o plano em ação no dia em que o grupo saiu para uma patuscada. Quando estenderam a esteira, surgiu o major Vidigal, que assim que chegou quis saber quem era Leonardo e assim que este se identificou Vidigal o prendeu por vadiagem.
Segundo Vidinha, foi uma malsinação.

A comadre e as duas viúvas se entretêm com as desditas de Leonardo, que em meio a uma patuscada cai nas garras do Major Vidigal por vadiagem, denunciado que fora pelos primos rivais.

XXXV – Triunfo completo de José Manuel - Com o sumiço de Leonardo da casa de D. Maria, José Manuel teve espaço para agir à vontade, tanto que acabou ajudando D. Maria em uma demanda do testamento de Luisinha. Como já tinha adquirido a confiança da velha, aproveitou-se e pediu a moça em casamento.
Luisinha estava naquela idade do abatimento, entre 13 e 25 anos e como “sabem todos (...), o Leonardo tinha abandonado Luisinha.” Ela aceitou a proposta de forma indiferente.
Num sábado à tarde, Luisinha e José Manuel casaram-se.
Ora, os leitores hão de estar lembrados da mania que tinha D. Maria por uma demandazinha; atirava-se a ela com vontade, e tal era o empenho que empregava na mais insignificante questão judiciária, que em tais casos parecia ter em jogo sua vida. Daqui se poderá concluir a satisfação que teria ela no dia em que se achava vencedora, e como se não julgaria obrigada a quem lhe proporcionasse a vitória.
José Manuel aproveitou-se disto; e no dia em que veio ler a D. Maria a sentença final que resolvia a pendência em seu favor, pediu-lhe a mão da sobrinha, a qual lhe foi prometida sem grandes escrúpulos.

José Manuel casa-se com Luisinha após êxito em causa forense, patrocinada pela velha. Luisinha aceita o pretendente com indiferença.

XXXVI – Escápula - Enquanto o casal está no gozo tranquilo da lua-de-mel e D. Maria faz cálculos aritméticos aconselhando a sobrinha, Leonardo, a caminho da cadeia, ao ouvir uma confusão, teve uma vertigem, seus ouvidos zuniram, deu um encontrão no granadeiro e fugiu. Pouco depois estava na casa de Vidinha.
Vidigal foi às nuvens, urrava; nunca nenhum garoto havia conseguido fugir. Jurara vingança.

Conduzido por Vidigal à casa da Guarda, Leonardo foge no caminho e volta para a casa de Vidinha. Ridicularizado em público, o Major promete vingança.


XXXVII – O Vidigal desapontado - Todos riram quando o major Vidigal, após vasculhar uma casa, saiu de mãos vazias. Quando o major ia entrando na casa da guarda, a comadre atirou-se aos seus pés e em prantos pedia a libertação do afilhado.
Todos que a ouviam, riam e quando o major disse que ele havia fugido, ela saiu toda sorridente.

“Passarinho foi-se embora / Deixou-me as penas na mão” – era o refrão cantado pelos granadeiros e pela multidão para ridicularizar o Vidigal, que planeja a recaptura. A comadre, ignorando a fuga de seu protegido, chora ajoelhada aos pés do Major e suplica pelo afilhado.

XXXVIII – Caldo entornado - Assim que a comadre chegou à casa de Vidinha, todos puseram a rir, mas após a alegria, a comadre começou a passar-lhe um sermão, afirmando que Leonardo tinha que arranjar alguma ocupação, caso contrário cairia nas unhas do Vidigal. “E poucos dias depois entrou ela muito contente, e veio participar ao Leonardo que lhe tinha achado um excelente arranjo, (...); era o arranjo de servidor na Ucharia Real”.
Leonardo prometeu se emendar.
O major, mordendo os beiços, não o perdia de vista.
Com o novo emprego, a despensa de Vidinha ficou abarrotada.
No pátio da Ucharia morava um Toma-Largura na companhia de uma moça bonita. Acontece que o homem era extremamente bruto e Leonardo, na mais pureza dos sentimentos foi à casa da moça levar-lhe uma tigela de caldo. De repente a porta se abre, era o Toma-Largura; a moça entornou o caldo, Leonardo pôs-se a correr e o toma-largura, atrás.
Daí a pouco, ouviu-se barulho e gritos e Leonardo atravessar o pátio às carreiras.
No dia seguinte o Leonardo foi despedido da Ucharia.

A comadre dirige-se à casa das velhas e exige de Leonardo que procure emprego e abandone a vadiagem. Consegue para ele um emprego na Ucharia Real (depósito de mantimentos), que Leonardo alivia do patrimônio Real. Na Ucharia, mora o Toma-Largura e sua mulher, por quem Leonardo se interessa. O Toma-Largura flagra Leonardo tomando um caldo com sua mulher e o escorraça de casa, e em seguida, do emprego.

XXXIX – Ciúmes - No dia seguinte o Vidigal já sabia de tudo e pôs-se em alerta.
Em casa, Vidinha, enfurecida pelos ciúmes, pediu a mantilha da mãe para ir à Ucharia falar com Toma-Largura. Leonardo que ouvia tudo, sem resultado pediu à moça que não fosse. No caminho, Leonardo deparou-se com o major e foi obrigado a acompanhá-lo.

Vidinha vinga-se da mulher do Toma-Largura, e Leonardo é capturado pelo Major Vidigal. Constrangido a sentar praça como granadeiro no Regimento Novo, é requisitado pelo Major para tarefas policiais.

XL – Fogo de palha - Enquanto Leonardo era obrigado a seguir o “seu destino”, Vidinha já estava na Ucharia. Lá, disse à moça do caldo que ela não tinha sentimentos fez um desaforozinho ao toma-largura e saiu, sem saber que era seguida por ele.

Vidinha vai tirar satisfação na casa do Toma-Largura, cuja amásia dera em cima de seu Leonardo.

XLI – Represálias - Em casa, enquanto Vidinha contava a sua aventura a todos, sentiram falta de Leonardo e reconheceram que este deveria estar com o Vidigal.
No dia seguinte, Tomás, que até então não havia tomado parte de nada na agitada casa, saiu para tomar as providências em favor do amigo.
Tomás foi à casa da guarda, mas não encontrou o amigo; procurou em outros lugares e nada. Sem opção, ele e os demais foram procurar a comadre que também foi à procura pelo afilhado e nada do moço.
Como Leonardo não dava notícias, acharam que ele estivesse escondido, resultado: Vidinha e os familiares passaram a odiá-lo.
O desaparecimento de Leonardo, aliado a visita que Vidinha fizera à Ucharia, contribuíram para que ela visse todos os dias, Toma-Largura duas vezes por dia.
Pouco tempo depois os familiares da moça já gostavam dele e ele passou a freqüentar a casa.
Certo dia, todos saíram para uma patuscada, mas Toma-Largura bebeu demais, armou-se a confusão, o que gerou no aparecimento de Vidigal e dos granadeiros.
Quando um deles se aproximou para prender toma-largura, todos se surpreenderam; Leonardo havia se tornado um dos granadeiros de Vidigal.

Todos se põem à procura de Leonardo. O Toma-Largura faz a corte a Vidinha, com apoio das velhas. Organizam uma patuscada em Cajueiros, o Toma-Largura se embebeda e aparece o temível Vidigal, que manda Leonardo, agora transformado em granadeiro, prender o rival embriagado.

XLII – O granadeiro - O Toma-Largura estava bêbado e caiu estirado na calçada, mas o fato de ser gente da casa real, fez com que os granadeiros deixassem-no ali.

Convém agora, um leve flash-back para saber como Leonardo se tornou um granadeiro. Foi simples, na noite em que fora preso, como o regimento do Vidigal estivesse precisando de soldado, reconheceu que Leonardo seria de grande ajuda, pois conhecia todas as bocas do Rio de Janeiro.

O problema é que sorrateiramente Leonardo aliava-se ao povo e ficava contra o major.

Concretiza a vingança contra o Toma-Largura, deixando-o bêbado na calçada; Leonardo oscila entre as funções de soldado e a vocação de vadio. Os gaiatos da cidade inventaram um fado com o seguinte estribilho: “Papai lelê, seculorum”, no qual o Major figurava morto, estendido no meio da sala, e os patuscos cantavam, formando a roda, cantigas alusivas. Leonardo, fazendo o papel de morto, é pilhado novamente pelo Vidigal.

XLIII – Novas diabruras - Um dia o major anunciou que tinha uma grande e importante diligência a fazer. Era prender um banqueiro de jogo-de-bicho e cantor satírico e chamado Teotônio. Onde havia festa ele era convidado.
Por coincidência, Teotônio estava justamente na casa de Leonardo-Pataca, na festa de batizado de sua filha.
Leonardo fora incumbido de entrar na casa e dar sinal para que prendessem o homem, mas como o jovem era astuto, fez Teotônio livrar-se da prisão, saindo disfarçado de corcunda. Mais uma vez enrolara o Vidigal.

Desta vez não houve punição, e o memorando é encarregado da prisão de Teotônio, cantador e tocador de modinhas e também banqueiro de jogos proibidos. A captura dar-se-ia na casa do velho Leonardo Pataca, por ocasião do batizado de seu filho. O jovem Pataca, bem recebido em seu antigo lar, revela a missão de que fora incumbido e arma um plano para dar fuga a Teotônio.

XLIV – Descoberta - Quando a patrulha do Vidigal estava se retirando, um amigo de Teotônio, todo esfuziante, correu a abraçar Leonardo para agradecê-lo por ter enganado o major. O jovem granadeiro ficou estático e foi preso.

Enquanto caminha para o quartel, como será que estão Luisinha e sua gente?

Depois da lua-de-mel, José Manuel pôs as manguinhas de fora, de posse da moça e da herança, mudaram-se da casa de D. Maria.
Agora que os dois estavam sozinhos, ele se tornou um marido-dragão, não permitindo que a esposa sequer saísse à rua. A moça chorava pela liberdade.
Certo dia na missa, a comadre e D. Maria se encontraram e voltara a se falar. Uma falava das desgraças de Leonardo e a outra das de Luisinha.
Ambas, agora, teciam planos para a libertação de Leonardo.

Um amigo indiscreto, ao cumprimentar Leonardo na frente do Major pela “façanha”, acarreta sua prisão imediata. José Manuel, “marido dragão” de Luisinha, revela-se péssimo companheiro e se desentende com D.Maria acerca de uma demanda. A protetora de Luisinha reconcilia-se com a comadre.

XLV – Empenhos - Primeiro a madrinha foi falar com o major, mas sem resultado. Como o major era um pecador antigo, como última tentativa, a comadre e D. Maria foram falar com o grande amor de Vidigal, a Maria-Regalada.
Lá chegando puseram a mulher a par de tudo e as três, na cadeirinha, puseram-se rumo à casa do major.

A comadre intercede inutilmente junto ao Major pelo seu afilhado que, preso, seria chibatado. A tentativa é inútil. Une-se então a D.Maria e vão procurar Maria-Regalada, ex-amante do Major. “Já naquele tempo (e dizem que é defeito nosso) o empenho, o compadresco, eram uma mola real de todo o movimento social”, observa lucidamente o narrador.

XLVI – As três em comissão -

Lá chegando, o major recebeu-as de rodaque de chita e tamancos, mas quando reconheceu as três, correu o mais que pôde para pôr a farda. Na pressa retornou à sala de farda, calças de enfiar, tamancos e um lenço de alcobaça nos ombros.
As três mulheres, chorando em um único coro, pediam a soltura de Leonardo, mas o major estava irredutível, até que Maria-Regalada chamou-o a um canto da sala e cochichou-lhe algo. Pronto, tudo mudou, Leonardo seria solto.

D.Maria, a comadre e Maria-Regalada se despacham em comissão para a casa do Major, em favor de Leonardo. Primeiramente, a comadre tenta o argumento “Ora, a lei...o que é a lei, se o Major quiser?...”Este argumento não funcionou. Em seguida, as três caem em pranto pelo protegido. O Major permanece inflexível. Finalmente, o argumento decisivo: Maria-Regalada chama o Major para um canto e lhe propõe morarem juntos. O resultado não se fez esperar.

XLVII – A morte é juiz - Nem bem chegou a casa, D. Maria, toda atrapalhada, teve que sair. José Manuel havia morrido.
Luisinha pôs-se a chorar, mas como choraria por qualquer vivente, porque tinha coração terno. Isso bastou para que uma vizinha dissesse a outra que não eram lágrimas de viúva.
A afirmação era correta, pois José Manuel nunca fora marido de Luisinha, senão por conveniência.
À saída do enterro, os escravos fizeram a maior algazarra.
Solto, Leonardo volta uniformizado e reencontra Luisinha. Reatam e despedem-se com um aperto de mão “bastante para dar que falar ao mundo inteiro”.

No regresso, D.Maria, recebe a notícia de que José Manuel morrera repentinamente de um ataque apoplético, depois de um enterro forense, com o procurador de D.Maria. Solto, Leonardo volta uniformizado como sargento da Companhia de Guerreiros e reencontra Luisinha. Reatam e despedem-se com um aperto de mão “bastante para dar que falar ao mundo inteiro”.


XLVIII – Conclusão feliz - Luisinha e Leonardo haviam reatado o antigo namoro; namoro de viúva anda depressa.
Como sargento não podia se casar foram à casa de Maria-Regalada, pedir ajuda e lá encontraram o major em rodaque e tamancos. Este era o segredo que Maria-Regalada havia lhe cochichado.
Após conversarem o major concordou em dar baixa ao Leonardo; de sargento de tropas, seria sargento de milícias.
“Além disto recebeu o Leonardo ao mesmo tempo carta de seu pai, na qual o chamava para fazer-lhe entrega do que lhe deixara seu padrinho, que se achava religiosamente intacto. Passado o tempo indispensável do luto, Leonardo, em seu uniforme de sargento de milícias, recebeu-se na Sé com Luisinha, assistindo à cerimônia a família em peso.”
“Daqui por diante, aconteceu o reverso da medalha. Seguiu-se a morte de D. Maria, a do Leonardo Pataca e uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui ponto final.”

Após a missa de sétimo dia, D.Maria entre suas rezas planejava o futuro de Luisinha, agora viúva e apatacada. O casamento com Leonardo enfrentava o obstáculo de que, naquela época, soldado não podia casar. Levam o problema ao Major, agora vivendo com Maria-Regalada. Uma semana depois, por influência da mulher, o memorando obtém baixa na tropa de linha e é, simultaneamente, nomeado para o nada desprezível posto de sargento de milícias.
Recebe, ainda, de seu pai, a herança do padrinho. Terminado o luto, advém o final feliz e o casamento com Luisinha.
Morrem depois D.Maria e Leonardo Pataca, e o narrador conclui: “uma enfiada de acontecimentos tristes que pouparemos aos leitores, fazendo aqui o ponto final.”

VIII – CONSIDERAÇÕES FINAIS:

- Estruturalmente, a obra obedece ao módulo da novela: uma sequência de células dramáticas, ou episódios, equivalentes aos capítulos, dispostos na ordem linear do tempo, com predomínio da ação sobre a análise e da técnica do suspense e do entrelaçamento. Aberta à inclusão ou exclusão de peripécias, quer no desenvolvimento, quer no epílogo, poderia, como aconteceu, sofrer mudança na disposição dos capítulos. Destinada entreter pelo movimento das cenas e situações, a narrativa concebe a existência como peregrinação ao longo de “passos” claramente demarcados e, por isso, suscetíveis de alteração.

- As Memórias, fundamenta-se nas memórias de um autêntico sargento de milícias, o português Antônio César Ramos:

“Melo Morais Filho conheceu este sargento quando, já desengajado, era diretor de escritório no “Diário do Rio”, após ter exercício estas mesmas funções no “Correio Mercantil”. Português de nascimento, chamava-se Antônio César Ramos e viera como soldado para a guerra da Cisplatina, em 1817, no Regimento de Bragança. Depois chegara a sargento de milícias, ainda na Colônia, sob o mando do Major Vidigal. Dando baixa, se passara para o emprego nos jornais. Conhecera e prezava muito a Maneco Almeida, o qual antes de subir para a redação, procurava o ex-sargento, puxava-lhe da língua, armazenava casos e costumes do bom tempo antigo, pra passá-los nos seus folhetins. Tudo isso o César relatara a Melo Morais Filho, que por sua vez tudo reporta nos “Fatos e Memórias”. E assim ficamos sabendo que Manuel Antônio de Almeida, além de leituras possíveis, tinha um ótimo informante dos casos de polícia e gente sem casta ou sem lei que expõe no seu romance.”


(Mário de Andrade, Aspectos da Literatura Brasileira)

Assim, aproveitando as memórias do velho colega de redação, ou ainda recorrendo a outros informes, Manuel Antônio de Almeida redigiu sua narrativa.

- É de supor que se os capítulos das Memórias não estavam prontos antes da série de folhetins, Manuel Antônio de Almeida já conhecia alguns na forma definitiva e que o todo da obra se esboçasse na mente do autor. Manuel Antônio de Almeida ostenta uma consciência artesanal que não admite outra alternativa: as memórias de Antônio César Ramos, conhecia-as na íntegra quando começou a dar-lhes vida nos artigos semanais.
Em suma, Manuel Antônio de Almeida poderia ter composto a novela ao correr dos dias, como “divertissement” ou para resolver apertos econômicos, mas conhecia decerto à totalidade da intriga; não a redigiu enquanto Antônio César Ramos a narrou, mas depois, ao menos depois que a assimilou à fantasia, sobrepondo, desse modo, sua memória do entrecho às recordações do velho sargento.
Baseada em memórias alheias, a novela de Manuel A.Almeida é, por conseguinte, uma biografia de Antônio César Ramos, ou autobiografia desta escrita por mãos alheias: da perspectiva do autor, as memórias são alheias; da perspectiva do biografado, o texto é alheio. Conclusão: o autor narra sua memória das memórias alheias.

- No famoso texto, “Dialética da Malandragem”, que escreveu sobre as Memórias de um sargento de milícias, o professor Antonio Cândido afirma que há um mecanismo próprio regedor das vidas de todos os personagens do livro e que “diversamente de quase todos os romances brasileiros do século 19, (...), as Memórias criam um universo que parece liberto do peso do erro e do pecado”. Em outras palavras, “as pessoas fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam”.

Assim o fato, por exemplo, de o padrinho roubar o dinheiro do capitão é atenuado por empregar os tais recursos na educação de Leonardo; o aloucado Leonardo Pataca recupera a herança que seu filho recebera do padrinho, o temível Vidigal tem repentes de generosidade e de humana compreensão etc.
Dessa maneira, todas as personagens do livro de Manuel Antônio Almeida vivem baseadas numa lei de compensações, que lhes retira a culpabilidade dos atos condenáveis ao realizarem ações consideradas boas.
A ruptura da tensão bem versus mal, que, na ficção romântica, opunha de forma maniqueísta heróis e vilões, virtudes e vícios. Em Memórias as personagens são niveladas de forma divertida, ninguém é intrinsecamente bom ou mal.

- Memórias parece não seguir o sentimentalismo dos poetas românticos de sua época. Ao contrário, ridiculariza os exageros sentimentais de suas personagens. Leonardo Pataca “era romântico, como se diz hoje, e babão como se dizia naquele tempo, não podia passar sem uma paixãozinha”.

Esse descompromisso com a idealização heróica ou com os transbordamentos da imaginação e da emoção colocam a obra de Almeida na contra-mão como o Romantismo, o que explica o desinteresse do leitor da época pelas aventuras e desventuras de seu memorando, em completo desacordo com o tom dominante.

- Há realismo em Memórias, mas um realismo espontâneo arcaico. Nada tem de antecipador do Realismo/Naturalismo da segunda metade do século XIX. Nada tem de cientificista e determinista. Não se trata do Realismo como programa, como doutrina literária. É um realismo que se esgota na fidelidade, na transcrição do que é ou do que foi. Nada é crítico nem analítico. É o realismo como uma constante universal do espírito humano e da arte, que se compraz em traduzir a realidade, atitude que deriva da natural busca humana da verdade.

- As personagens são extraídas das camadas populares (“a arraia miúda” e o “Zé Povinho”) e muitas delas são anônimas, designadas apenas pela profissão ou grupo social: o Barbeiro, a Parteira, os meirinhos, as saloias, a Cigana, o Mestre-de-Reza, o Toma-Largura. Como documento social, observa-se a omissão de três estratos da sociedade: da elite, da camada trabalhadora e dos escravos negros. São mínimas as referências ao trabalho braçal.
A condição de agregado, ou seja, de uma pessoa quem sem vínculos de sangue passa a viver às custas de uma outra família, é sustentada em cima da relação de “favor”. Essa realidade mediada pelo “favor” implica uma atitude inclusive de submissão em relação à família que recebe o agregado.

- A linguagem nada tem de ufanista e se afasta do tom enfático e adjetivoso dos contemporâneos. Nas intervenções do narrador, é respeitada a norma culta; mas, nos diálogos entre as personagens, é revestido de forte oralidade, reproduzindo lusitanismos e solecismos, característicos do registro coloquial. É estilo tosco, direto, sem efeitos embelezadores, derivado do tom informal de bate-papo, ou da crônica jornalística. Tal informalidade no tratamento linguístico é, com insistência, apontada pela crítica, ora como defeito de composição, ora como fato antecipador da linguagem do chamado conto-reportagem.

- O narrador assume atitude de surpreendente neutralidade. Não toma partido de ninguém. Apenas observa e relata, entre irônico e divertido, a vertiginosa enxurrada de trapalhadas e apuros de seu memorando e dos que o cercam, por parentesco, afeição, rivalidade ou obrigação de vigiá-lo.
De maneira informal, como nas crônicas jornalísticas, o narrador aproxima-se do leitor, incluindo, chamando sua atenção para os fatos que julga, significativos. Essas referências metalingüísticas a acontecimentos já narrados ou ainda por narrar visam a facilitar a recepção da obra, recapitulando episódios na suposição de que o leitor não os tinha valorizado devidamente. Cabe lembrar que, em sua versão original, Memórias foi um folhetim semanal.


- O autor é minucioso no registro dos costumes cariocas no período joanino.
As procissões, mesclando sacro e profano, a religiosidade, a festa popular e a vadiagem, a Festa do Divino, o Entrudo, os fados, modinhos e lundus, os ritos africanos nos terreiros, a vida forense, os ofícios populares, as súcias, tudo é registrado pelo narrador que integra harmoniosamente o documento social da época ao enredo de ação romanesca.
Manuel Antônio de Almeida foi membro da diretoria da primeira sociedade carnavalesca do Rio de Janeiro, o “Congresso das Sumidades Carnavalescas”, fundada em 1885, o que avaliza a sua convivência com a cultura popular da época. Dessa convivência, Memórias aproveita o registro numeroso dos instrumentos musicais, das danças, modinhas, fados e lundus, incluindo a transcrição de trechos de três modinhas populares.
Ao lado dessa fidelidade à vocação musical e festiva do carioca, registra-se, em outro nível, a visão carnavalizadora da sociedade, ao mostrar o avesso de instituições como clero, justiça, governo e família.
O humor substitui a exaltação sentimental dos românticos.

- Leonardo, o protagonista, não é herói nem vilão. Bastardo, filho de um beliscão e uma pisadela, é antes um anti-herói, malandro, vadio, oportunista, movido não por fundamentos éticos ou religiosos, mas pela inconseqüência de seus atos ou pela simples oportunidade de se divertir.
Leonardo não é pícaro (“moço nascido quase sempre de pais pobres e de baixa extração, raramente honrados, o qual, por culpa de más companhias, ou por falta de instrução, ao ver-se lançado na confusão da vida e entregue a si próprio, cai na vadiagem, afasta-se do trabalho e luta contra a vida como pode, com ousadia e falta de escrúpulos, com enganos, malícias e más artes, querelas e furtos. A necessidade de viver o faz desavergonhado e inescrupuloso mas, apesar da fome e dos fracassos, do sol e dos aguaceiros, em linguagem real e figurada, não desejaria ser diferente do que é, e não trocaria sua livre e despreocupada existência por uma sedentariedade honorável, por uma cama e um teto”), embora guarde com ele remoto parentesco.
O pícaro é mendigo, vagabundo, andarilho, aventureiro, com vistas a sobreviver, enquanto Leonardo não sai do Rio de Janeiro; seu perfil é mais o do malandro carioca; suas artimanhas resultam de ter garantia a existência erradia e não é um marginal que engana para matar a fome.


- O par amoroso Leonardo-Luisinha também é sui generis. Desajeitado, o memorando é impulsionado por alguma afeição e indisfarçável interesse no potencial econômico da heroína, herdeira apatacada de D.Maria. Luisinha não é particularmente bonita. Ao contrário, é descrita como desgraciosa e desprovida de maiores atributos físicos ou espirituais. Não há idealização amorosa.

- O Rio de Janeiro que D. João e sua corte conheceram 200 anos atrás estava mais para terra de ninguém do que para paraíso tropical. A fim de coibir os freqüentes assaltos e assassinatos que atormentavam a cidade, foi criada a Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, comandada por um coronel português. Seu assistente brasileiro era o temível major Vidigal - que nos foi apresentado por Manuel Antônio de Almeida em suas Memórias de um sargento de milícias.
O major Vidigal, que mais tarde daria nome ao Morro do Vidigal, favela da zona sul (as terras pertenceram a ele), é lembrado por sua astúcia. Para se aproximar de seus alvos, criminosos e malandros em geral, ele freqüentava rodas de capoeira. Era respeitado e ainda mais cruel e linha-dura do que o chefe, o intendente-geral da Polícia, Paulo Fernandes Viana, nomeado por D. João.
Vidigal (Leblon - São Conrado)
O nome Vidigal era sinônimo de poder no Rio de Janeiro do Primeiro Império (1822-1831). O major de milícias e cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, Miguel Nunes Vidigal, por exemplo, foi um dos homens mais influentes da cidade no século XIX. Por causa disso, recebeu presentes diversos ao longo da vida. Alguns deles bem valiosos, como o enorme terreno aos pés do Morro Dois Irmãos, exatamente onde hoje existe a favela. O major recebeu o agrado de monges beneditinos por volta de 1820. Daí a origem do nome Vidigal, que batizou primeiro a praia e depois a favela.
O terreno ficou em mãos de herdeiros do major Vidigal até 1886, quando foi comprado pelo engenheiro João Dantas. Seu sonho era construir ali o ponto de partida de uma linha férrea que seguiria até o litoral sul fluminense. João Dantas gastou todo seu patrimônio na empreitada, que no final acabou não virando realidade mas serviu como base para a construção da atual Avenida Niemeyer, que liga os bairros do Leblon e São Conrado.
Os primeiros barracos do Vidigal começaram a ser construídos na década de 40. No início, a comunidade era conhecida como Favela da Rampa da Avenida Niemeyer. A explosão demográfica no local aconteceu nos anos 60 junto com a urbanização dos bairros do Leblon e Ipanema.
Em 1968, foi iniciada a construção do Hotel Sheraton, uma das cinco estrelas mais luxuosa da cidade. A companhia que operava o hotel ainda tentou privatizar a praia, mas, os moradores da favela ganharam na Justiça o direito de frequentá-la.
fonte: http://valiteratura.blogspot.com/2010/06/memorias-de-um-sargento-de-milicias.html

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